Filme nacional retrata luta de moradora
para continuar no prédio em que vive. Local e trama servem de cenário para as
mais variadas “dedadas na ferida” no moralismo brasileiro
Por Paulo Henrique Faria
O cinema nacional ganhou um
integrante de respeito para sua admirável e guerreira filmografia. Falo do
ótimo “Aquarius”, filme dramático dirigido pelo progressista Kleber Mendonça
Filho e, protagonizado pela eterna diva brasileira, Sônia Braga. A obra aborda
com muita felicidade temas espinhosos da nossa sociedade. São duas horas e
vinte cinco minutos de tramas que perpassam os anos 80 e os dias atuais. Tudo
na bela cidade litorânea de Recife.
Bem, vou me ater às principais
temáticas expostas na película, bem como seus principais pontos positivos; as
dificuldades que enfrentou para exibição e a falta de reconhecimento de
autoridades. Isto dito, destaco primeiramente a assertiva trilha sonora
empregada. Logo no início, no ano de 1980, toca no som do icônico Opala o hit “Another
One Bites The Dust” do Queen. Depois, com o desenrolar da história se ouve mais
uma canção dos caras, com a animada “Fat Bottomed Girls”. O bom gosto sonoro
não para por aí, pois entram em cena ainda Maria Bethânia e Roberto Carlos. A
cultura pop internacional também ganhou destaque, com a exposição do grande pôster
de “Barry Lyndon”, do gênio Stanley Kubrick, no apartamento. Além das referências
ao mestre John Lennon.
Todo
esse bom gosto pertence à protagonista Clara – mas nos leva a crer que é influência
íntima do roteirista e diretor Kleber Mendonça – interpretada brilhantemente
por Sônia Braga. Uma Jornalista e escritora aposentada, que vive sozinha no
apartamento oito, do velho edifício “Aquarius”. Outro fator interessante, foi o
cuidado com o roteiro. Com cenas longas e diálogos bem colocados, é do tipo que
nos prende atenção a todo instante. Clara enfrentou o terrível câncer de mama
em 1980. Seu marido, fiel companheiro nesse momento difícil, falecera no final
dos anos 90. Viúva, viu seus três filhos crescerem e se mudarem de casa. Mas
Clara entra em depressão? De forma alguma. Com seus sessenta e poucos anos ela
faz ginástica, vai à praia – que fica do outro lado da rua – e sempre revisita
sua bela e extensa coleção de vinis.
Clara gosta de sair com suas amigas
de mesma idade para casas de dança. Lá, acaba se relacionando com um senhor contemporâneo
boa pinta. Depois de umas bebidas, do flerte mútuo e, da dançada, vão se beijar
no carro do cara. Até aqui, tudo normal, mas, quando a coisa começa a ficar
mais quente, é que vem a primeira polêmica. Clara teve que retirar a mama
direita por conta do câncer e, ao perceber tal situação, o sujeito para de
beijar e se oferece a deixá-la em casa. Acabou com o clima. Puta idiota
preconceituoso, hein! Clara, não deixa por menos, recusa a carona e volta de
táxi. É chavão, mas cabe muito bem aqui: “antes só do que mal acompanhada”.
E o empoderamento da mulher não para
por ali. Clara se mostra independente na sua vida pessoal e financeira.
Feminista convicta, dá valor nas lutas diárias que as demais mulheres têm que
enfrentar no cotidiano. Trata sua empregada, dona Ladjane (Zoraide Coleto) como
uma integrante da família. Vai na festa de aniversário dela e dá até presente.
Aliás, Ladjane sofreu muito com o atropelamento do seu filho. Vítima de ato
sórdido de um condutor alcoolizado, que se quer prestou socorro. Triste retrato
da impunidade que vivenciamos, sobretudo nos crimes de trânsito.
Outros fatores polêmicos,
principalmente aos olhos dos conservadores, surgem com o fato do filho mais
novo de Clara ser homossexual assumido. A mãe mostra que sua índole é ímpar e
clama pela visita do caçula junto do seu atual companheiro, do qual ainda não
conhece. E a moral e os bons costumes levam outro duro golpe, quando Clara liga
para um garoto de programa indicado por sua amiga. Sozinha, insone, com abstinência
sexual e grilada por tudo que passava na vida pessoal, a “coroa” protagoniza
cenas picantes com o contratado. Aliás, o sexo – como sempre deve ser – é
tratado como algo comum no filme. Não para chocar e tampouco para propagar
pornografia. Mas sim, para nos mostrar que este tabu precisa cair. Somos humanos,
sentimos vontade e transamos. Então qual o problema de falarmos sobre??? As
cenas possuem poucos cortes nestas horas. Ponto para Mendonça!
Entretanto, o escopo da trama gira
em torno do prédio, em que Clara reside. Única moradora do pavimento, a
experiente escritora não cede às investidas da construtora, que quer a todo
custo comprar seu apartamento, para colocar tudo abaixo e construir um edifício
comercial moderno no lugar. Mas por que Clara não quer vender? Por que é
teimosa? Com certeza não. Apesar de muitos a taxarem de louca ou mesmo de egocêntrica,
Clara só quer ficar no local que experimentou as mais variadas alegrias. No
qual viveu mais de trinta anos de sua atribulada vida. Criou seus filhos. E lhe
foi herdada de sua querida e iconoclasta tia. Enfim, o apartamento é muito mais
que uma propriedade. É o lar e o objeto terno que abriga o aconchego dela. As
pessoas envolvidas não entendem sua escolha. Nem sua filha mais velha e nem o
filho dos antigos vizinhos. O engenheiro civil responsável pelo projeto do
futuro empreendimento, conhecido por Diego Bonfim (Humberto Carrão), faz de
tudo para convencer Clara a se mudar. Mesmo que seja na marra, diga-se de
passagem. Diego aliás, é o típico playboy e “filhinho de papai” arrogante, que
não mede esforço para passar por cima de quem não atende às suas vontades. Ele
sabotou de inúmeras maneiras a tranquila convivência de Clara no Aquarius. De
orgias barulhentas até o amanhecer com os amigos no andar de cima, a cultos
lotados de evangélicos. Mas a gota d’água foi quando descobriram a colocada
proposital de colônias de cupins nos apartamentos do bloco dez. Tudo com o
claro intuito de condenar todo o local. Trapaça das grandes!
Clara diante do absurdo jogo sujo do
qual enfrentava, resolveu contra-atacar. Chamou sua advogada e amiga para o
levantamento de provas e possível abertura de ação judicial. Tirou fotos e
passou informações cruciais para o jornal de um outro amigo de longa data.
Clara, durante todo esse processo se mostrou muito forte e decidida. Em nenhum
momento deixou de exercer seu direito de livre arbítrio. Afinal, se ela é proprietária
do apartamento, é direito dela continuar morando lá. Não podemos nos deixar
oprimir por corporações imobiliárias, políticos ou polícia. Ela deixou claro,
que só sairia de lá depois de morta. Foi um verdadeiro exemplo de resistência e
perseverança. Uma grande e complexa personagem, que só poderia ser interpretada
pela grandiosa Sônia Braga. A veterana atriz paranaense, depois de muito tempo
sem fazer uma protagonista, entrega uma atuação generosa e muito convincente.
Parece que o papel fora feito para ela. Incrível! O elenco como um todo é de
qualidade. Kleber Mendonça Filho faz uma direção bem lúcida, cheias de tomadas
pouco usuais. A fotografia é bela e o roteiro ficou bem amarrado.
Aquarius, tem tudo para se tornar um dos grandes clássicos do cinema nacional daqui uns anos. Sofreu represálias antes mesmo de sua estreia. Tudo porque toda a equipe fez um protesto sincero em Cannes, contra o impeachment da ex-presidenta Dilma Rousseff. O ocorrido foi em maio e contou com cartazes de “Fora Temer!” e tudo. Liberdade de expressão, ora bolas! Por este posicionamento político, o Ministério da Justiça queria inicialmente impor a exagerada censura de 18 anos. Tudo para limitar o número de espectadores do longa nas salas de exibição. Mas depois de muita pressão popular e da classe artística, voltaram atrás e deixaram na plausível classificação indicativa de 16 anos. Todavia, o Governo Federal atual, que adora dar um golpe em seus adversários, fez com que o mediano “Pequeno Segredo”, fosse o escolhido para representar o Brasil na corrida pelo Oscar de melhor filme estrangeiro em 2017. Ridículo! Com Aquarius, não só ficaríamos entre os selecionados finais, como chegaríamos com chances reais de vitória. Michel Temer e sua trupe despreparada, pelo visto é contra os trabalhadores, movimentos sociais e, agora, contra a cultura nacional também.
Bom,
como eu e minha namorada não pertencemos à esdrúxula e estereotipada classe de “pessoas
de bem”, fomos assistir à Aquarius no último sábado. E posso garantir que
gostamos muito do que vimos. Boicote? Sim, eu faço! Mas com os desnecessários comentários
de Reinaldo Azevedo e a lamentável linha editorial da revista “Veja”. Para eles e os demais críticos oportunistas eu digo: Viva a
nova era de Aquarius!